14 de março de 2008
33
respiro fundo no instante em que a madeira canta o ranger dos passos e o atordoar da visão no espelho do mar.
sussura a maré para que me cale.
para que ouça o chamamento de mim neste lugar, neste ventre em que sempre fui, por mais que em partilha o tenha desnudado.
ouço o corpo que repete o gesto lento de gaivota a nascer dentro, como há tanto não.
vem-me a meninice aos olhos, o corrupio em que os pés sobrevoavam este espaço, tacteando o fresco entre dedos, em que o olhar era a forma de um barco, e as mãos ondulavam o tocar de maresia ao entardecer.
vem-me dentro a salsugem ao abrir a boca para gritar vento.
vem-me a paz dos cânticos longínquos das mulheres que rumam os pequenos barcos na luz amarelada e baça no regresso ao cais.
e tudo me é nítido.
neste lugar que me tem o embrionário ar que aqui não preciso.
e avanço, com os mesmos pés descalços com que aos 5 anos descobri o significado de abrigo, para além do abraço de quem, sempre, desde sempre.
por isso sustenho a respiração, sustenho-me em quem me lembro que sou, para que estale a pele dos dias magoados.
neste abrigo em que em menina me fiz gaivota por abrir o coração, para que entrasse, sem nunca ser morta.
neste respirar em que o mar me devolve a estranha forma de mulher, em que cada decisão me toma na opacidade branca deste silêncio.
neste ventre que me tem o ar, em que é o meu sangue a salsugem, deixo que o mar me solte a pele magoada, recolho o que de mim sei, e posso, por fim, partir e voar.
imagens: desiree dolron, evgeniy shaman, gonalo gaioso
vídeo: patrícia pina
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