23 de fevereiro de 2007

dias cheios de números, datas cheias de saudade



(2 agosto 1929 - 23 fevereiro de 1987)

Há assim estes dias cheios de números, estas datas cheias de saudade, em que memoriar é o verbo do sentir. E em que arrepia qualquer apontamento que lembre a morte do Zeca. Por mais que justo, por mais que.

E é tão bom ter crescido assim,
(a saudade a sorrir)
a afinar a ternura nas caixinhas de misteriosa música
(com os dedos atentos a rodar no som antigo)
a comer chocolates, inteiras caixas, inteiras como a partilha
(o quentinho do cheiro que se derrete)
a experimentar as músicas novas - 'o ouvido afinadinho...!' na calmia da concentração
(ecoam vozes, acordes, o som da voz que depois até ficava assim)
a mão que ajudava a descer da oliveira porque a joana, o pedro, o joãozinho, o pedro, o toninho (lembro um pouco menos o zé...) já não tinham idade para essas coisas nem para brincar aos cabeleireiros
(o corrupio, o colo, a saudade, tanta)
as viagens
(o sabor da raia ainda na ponta da desconfiada língua)

- lembro, numa das viagens, Albufeira, creio, sim, estavamos nós num bar de hotel, noite. um pianista convencional, um grupo de estrangeiros. eu, a cantarolar, como sempre. o pianista, a achar graça à andarilha cantante, chamou-me, deu-me o microfone para as mãos, para que ensinasse às pessoas estrangeiras uma música popular portuguesa. a quem o disse... punho erguido, voz ao alto, olhar em frente destemido, 'afinadinha...!' "Grândola Vila Moreeeeeeeennaaaa"... a aflição do pianista, que tão depressa me retirou o microfone como mo entregou. -
(o riso largo e solto do zeca, da mãe, do toni, da zélia, a minha incompreensão e vergonha "-então não era música portuguesa?!!!...)
sim, as viagens, a importância de ajudar o Zeca, depois já tão doente
(e ainda o sentir tanto tudo)
o coliseu, o palco, a fuga do tempo que me levou com o filhote do Júlio a passear no telhado do coliseu (somos filhos dos organizadores disto, se for preciso vamos chamar! - à pergunta controladora dos senhores da segurança)
o dia em que a mãe me foi buscar à escola porque
(a camisola das riscas entrelaçadas azuis e amarelas ainda a fazer-me uma terrível comichão no pescoço)
porque.
e escrevi uma carta ao Zeca, como quem diz até logo ao amigo grande com quem canta e come chocolates ao colo, sem saber já com quem partilhar a gulodice. e a flor vermelha apertada no peito
(a falta do gesto terno da mão sobre a cabeça, o afago que ficou para sempre)

e hoje as lágrimas caíram gratas, comovidas, quando a filhota pediu para adormecer "mãe, canta a música do menino de alva" "qual, amor?..." "a do pedro, a do zeca do menino de oiro do veleiro" e a voz estremeceu antes de ficar 'afinadinha...' ao embalar. e a filhota, a acompanhar "venham comigo venham que eu não vou só..."

é, há dias assim...cheios de números, datas cheias de saudade...
(com o coração cheio de verdade e de amor).








Zeca
por José Mário Branco

Vieste de menino de oiro pela mão
Acordar a madrugada
E fez mais ás vezes uma só canção
Do que muita panfletada
Grandes janelas soubeste abrir
Por onde o ar correu sem te pedir
Que não se cansem de nascer
As fontes onde vais beber

Nunca mais te hás-de calar
Ó Zeca, para nós
Canta sempre sem parar
Que é seiva e flor
A tua voz

Vestiste a capa de caloiro coimbrão
Para ultrapassar o fado
E, em cada natal, teu fruto temporão
Nunca foi ultrapassado
Na distracção jogas á defesa
Com humor disfarças a tristesa
Cantas a esp'rança e o amor
Que o povo te ensinou, de cor

Nem tudo o que reluz é oiro, pois então
E bem gostaria o facho
De te ver calado e manso pela mão
Com medalhas no penacho
Co'a tua ronha felina e sã
Vais-lhe atirando as flechas de amanhã
O olho pisco a acender
E a garganta a acontecer

Nunca mais te hás-de calar
Ó Zeca, para nós
Canta sempre sem parar
Que é seiva e flor
A tua voz

Vieste de menino de oiro pela mão...















...e ainda...
...porque a voz nunca esmorece...e eu chamo as flores...








...um abraço, amigo grande.
e a todos os que.

Sem comentários: